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"Watchmen" na Parq Magazine

É já amanhã que estreia em Portugal a tão aguardada adaptação de Watchmen. A Parq Magazine teve a amabilidade de me convidar a escrever um artigo sobre o livro, fazendo a ponte para a adaptação cinematográfica.

Aqui fica desde já o link para a versão em pdf (o artigo está nas páginas 56 a 59). Em alternativa, segue a transcrição completa do texto:

“A melhor novela gráfica de sempre!”. Talvez a frase que mais se ouviu sobre Watchmen ao longo dos últimos dezoito anos. Após vários anos no limbo legal de Hollywood, estreia finalmente a adaptação ao cinema da mais aclamada obra de sempre da BD americana.

Editado em 1987, quando os últimos dias da Guerra-Fria se aproximavam, «Watchmen» marca a viragem definitiva na abordagem narrativa à BD de super-heróis, desmontando e desconstruindo todos os clichés e romantismos associados ao género, muitos deles vigentes desde a sua massificação a partir do final da década de 30. Desde a primeira vinheta, a obra suprema dos britânicos Alan Moore e Dave Gibbons marca indelevelmente um estilo: o Comediante morreu, e a sua imagem de marca, um crachá amarelo com um simples smiley, jaz ensanguentado numa sarjeta de uma rua de Nova Iorque. É o fim da inocência dos super-heróis. Em «Watchmen» os super-humanos envelhecem, têm falhas de carácter, dúvidas, depressões. Caem em desgraça. Matam e morrem. Paradoxalmente, o impacto de «Watchmen» na BD americana foi tal que gerou uma pletora de cópias e imitações baratas - repletas de estilo, mas sem qualquer substância - que quase arruinaram a indústria durante a década seguinte.

A história transporta-nos a 1985. Os Estados Unidos venceram a guerra do Vietname e Richard Nixon ainda é presidente. Dr.Manhattan, o super-herói quântico supremo, é a pedra basilar do poderio militar americano que, no auge da Guerra-Fria, mantém o eterno inimigo russo em constante cheque. Porém, os ponteiros do relógio do Juízo Final estão fixados em permanência nas 5 para a meia-noite. Primeiro, os super-humanos foram ilegalizados; agora, começam a ser suprimidos. Num mundo mergulhado num estado de aparente letargia, a morte do Comediante poderá ser o gatilho que colocará todo o sistema instituído e, em última instância, a própria humanidade em causa. E caberá aos regressados, e restantes, watchmen (guardiões) evitá-lo a todo o custo, mesmo que o preço seja a sua própria humanidade. Ou a sua alma.

Em termos visuais, «Watchmen» assenta apropriadamente numa estrutura básica de 9 vinhetas por página, numa grelha em registo clássico que confere uma rigidez imprescindível ao tom narrativo, denso e quase claustrofóbico. A solidez artística de Dave Gibbons e a sua atenção ao mais ínfimo dos detalhes são perfeitamente complementadas pela palete de John Higgins. Este fugiu deliberadamente às cores primárias usualmente associadas ao estilo, optando antes por tons secundários que poucos à partida imaginariam resultar, como castanhos, roxos, ocres, rosas e laranjas.

Outra das experiências mais curiosas no livro é a inclusão de narrativas paralelas, em clara analogia com a trama principal. Num mundo em que os super-heróis fazem parte do quotidiano, histórias sobre o tema não exercem qualquer apelo e os leitores viram-se sobretudo para, imagine-se, comics de piratas, habilmente recriados e incluídos por Moore e Gibbons no contexto da própria narrativa central. Adicionalmente, no final de cada capítulo, Moore faz uso de apêndices em texto que enriquecem a experiência de leitura, conferindo toda um envolvência histórica que dá à obra um carácter quase real, através de trechos de livros ou recortes de jornais imaginários das épocas que antecedem o presente de «Watchmen».

Dentro da contextualização histórica, os paralelismos políticos assumem particular significado e é curioso verificar como tanta vez a realidade imita, tardiamente, a ficção, revelando bem à saciedade a capacidade visionária de Alan Moore, o fleumático inglês que se tornou no mais premiado argumentista de sempre da BD… americana. Em «Watchmen», Richard Nixon, em alta após a vitória na guerra do Vietname, perpetua-se na presidência dos Estados Unidos graças à aprovação de uma legislação especial que possibilita a sua recandidatura para além de dois mandatos. Situação precisamente análoga à que se vive agora na Venezuela com a tentativa bem sucedida de Hugo Chávez em se perpetuar no poder via reeleições sucessivas supostamente democráticas.

Aliás, a forma como Moore reescreve a verdadeira história dos Estados Unidos chega a assumir laivos de uma malvadez subtil. Qualquer leitor mais distraído poderá passar ao lado da breve menção ao assassinato de Woodward e Bernstein, os dois jornalistas do Washington Post que investigaram e tornaram público o caso Watergate, que viria a determinar a renúncia de Nixon a meio do seu segundo mandato. Na realidade alternativa de «Watchmen», a supressão estratégica dos dois repórteres implica o abafamento do mediático escândalo, salvaguardando Nixon de quaisquer consequências. Porém, no mundo reinventado por Moore, o Nixon de 1985 já não é o homem firme e determinado de outrora, antes parecendo uma bizarra fusão entre a versão pré-alzheimer do presidente americano Ronald Reagan e a “Dama de Ferro” britânica dos anos 80, a então primeira-ministra Margaret Thatcher - talvez as duas figuras mais odiadas pelo liberalismo e pela esquerda britânicos da época, que Alan Moore tão bem personifica.

Esta quase militância anti-sistema de Moore tem-no colocado em permanente confronto quer com as grandes editoras americanas, quer com os estúdios de Hollywood que têm adaptado as suas obras ao cinema, com resultados no mínimo pouco brilhantes. Depois do inenarrável «Liga dos Cavalheiros Extraordinários», do incipiente «From Hell – A Verdadeira História de Jack, O Estripador» e do razoável, mas adulterado, «V for Vendetta», o realizador Zack Snyder, que adaptou «300» de Frank Miller ao grande ecrã, foi o escolhido para dirigir a mais ambiciosa adaptação de sempre, com um orçamento que parece acompanhar as enormes expectativas. Depois de quase 18 anos de disputas legais entre a Warner e a Fox pelos direitos da adaptação, e uma derradeira investida da segunda que quase liquidou a estreia para a data prevista, a margem para erro é praticamente nula.

A versão cinematográfica de «300» era fria e plástica, demasiadamente digital para recriar a brutalidade das batalhas entre Espartanos e Persas. Mas «Watchmen», além de um orçamento largamente superior, conta com a eloquência cínica e os diálogos fluidos de Alan Moore que contrastam bem com o discurso “duro de rins” e ostensivamente estereotipado de Miller. E isto poderá servir melhor a transposição de «Watchmen» para o cinema. Os dois trailers já lançados prometem: a verosimilhança de guarda-roupas, cenários e situações parecem indiciar uma adaptação respeitosa do livro. Mas o sucesso, pelo menos crítico, do filme estará na sua capacidade de transmitir as subtilezas narrativas que transformaram «Watchmen» na obra de referência que é hoje. Recriar as montanhas de Marte ou a fortaleza polar de Ozymandias, o “Homem mais inteligente do mundo” não será tarefa difícil. Mas até no cinema, “Deus encontra-se nos detalhes”, mesmo que, neste caso, Deus se chame afinal Doutor Manhattan.

Comentários

Anónimo disse…
Guarda-me duas cópias, sff. Uma é para mim e a outra pede o Hugo Jesus. A malta das livrarias de BD anda tudo nos meios de comunicação social. És tu na 'Park', o man da Mongorhead às quintas-feiras à noite no 'Indiegente' na Antena 3 e para o próximo mês o Hugo no 'Porto Canal'. Olha a BD a conquistar!

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