A facilidade com que se apregoa a genialidade ou a simples qualidade de fulano ou beltrano, faz-me desejar ter nascido sicrano. Se essa facilidade é genuína e simplesmente fruto de ignorância ou inanidade, ou se antes transborda desse hábito desprezível que é o nacional-porreirismo proselitista, é algo variável de acordo com os protagonistas. Porém, essa facilidade existe; e é uma facilidade que reflecte facilitismos (passe o pleonasmo), que reflecte a mentalidade do muito em detrimento do bom, a mentalidade do mais em vez do melhor, do denso ao invés do escorreito. Para a inanidade crítica, a cor é superior ao preto e branco; o detalhe atafulhado e claustrofóbico é superior à simplicidade clara e objectiva; a beleza repetitiva e silicónica é superior à diversidade da figura e da forma.
Mas o mal não é, de todo, um exclusivo nosso: li algures a semana passada que o artista Max Fiumara tinha sido afastado de Infinity Inc., um dos novos títulos mais marginais da DC, por ter, alegadamente, um estilo “demasiado Vertigo”! Mas que disparate é esse? Demasiado Vertigo? Mas não estará a Vertigo precisamente associada a alguns dos títulos de sucesso mais duradouro nesta indústria feita crescentemente de títulos efémeros? Não estarão muitos dos artistas associados aos títulos da Vertigo entre os melhores e mais sólidos narradores visuais da BD americana? Então, repito, que disparate é este de se ser “demasiado Vertigo”? Faltam as poses disparatadas, as vinhetas trapalhonas que se sobrepõe e atropelam, os riscos e linhas inúteis colocados muitas vezes de forma arbitrária? Pois, deve ser isso que falta…
Voltando agora aqui ao burgo (a quem muito falta), e já que estou numa de disparar em todas as direcções qual G3 desgovernada, continuemos. Já escrevi algures sobre isso e já terei decerto vociferado bastantes vezes mais contra tal facto: a alegada facilidade em escrever para BD e a quantidade crescente de “estórias” e “argumentistas” que surgem, muitos dos quais desconhecendo em completo a ferramenta única indispensável para se poder vir a ser um argumentista – saber escrever e dominar os fundamentos básicos da língua em que escrevem, neste caso o Português. A partir daí, poderíamos depois discorrer sobre rasgos de inspiração, ideias ou a originalidade destas, sobre estrutura narrativa, ritmos e pausas, enfim, sobre as diversas técnicas que permitem transformar a semente inicial que brotou na mente do criador num objecto plausível de ser interpretado e, desejavelmente, compreendido e apreciado pelo leitor, receptor final da mensagem (a não ser, claro, que façamos algo destinado apenas ao apetite voraz do nosso umbigo).
O leitor… Infelizmente, o leitor (tal como o cliente) não tem sempre razão e é bastas vezes acossado da tal incapacidade crítica a que comecei por aludir. Confesso que uma das correntes de opinião que me irrita solenemente (e vão me perdoar alguns dos meus leitores que sei que se inserem nela) é a conversa estilo “foi só o primeiro número, não dá para ter uma opinião sobre a história ou sobre a escrita”! Ó meus amigos… sobre a história ainda vá; dou isso de barato; agora, sobre a escrita? Sobre a capacidade literária, narrativa, técnica, comunicacional de um argumentista? Às vezes basta uma página, quanto mais um número inteiro! Tenho lido coisas de pseudo-argumentistas que são de bradar de céus, desde erros ortográficos grosseiros até uma completa incapacidade em distinguir uma vírgula de um ponto final, passando claro por diálogos ilógicos e absurdos que transformam qualquer novela da TVI no mais requintado exercício shakespeariano. Perdoem-me, mas não preciso de ler um compêndio de 100 páginas de barbaridades narrativas e atentados semânticos para ditar o veredicto final.
Mas sosseguem agora os caros leitores, tão indecorosamente por mim visados no parágrafo anterior. A falta de capacidade crítica não é exclusiva deles; bem pelo contrário. Quem mais senão os próprios criadores são claramente afectados por essa maleita castradora que é a falta de capacidade auto-crítica e auto-avaliadora? Quem mais senão eles, tantas vezes encouraçados numa teimosia empedernida que transforma qualquer erro numa opção estilística predeterminada e qualquer crítica endereçada num ataque pessoal aleivoso? E quantos não revelam uma completa cegueira artística, ignorando sugestões e críticas perfeitamente fundamentadas, e apelidando desenhos manifestamente falhos de “anatomicamente perfeitos”?
“Mas”, já ouço a plateia a sussurrar, “não és tu próprio autor, ou aspirante a tal, e o que te faz pensar que estás imune a essas fraquezas pessoais, afinal tão humanas?”. Nada, meus caros, a não ser a minha determinação férrea e contínua de melhorar, de aperfeiçoar o que faço e o que ajudo a concretizar. E é essa determinação que me tem feito escutar, ponderar, dissecar tudo o que tem sido dito ou escrito sobre os livros que já gerei ou editei, da crítica mais assertiva e concreta à grosseria mais maldosa e mais mal intencionada. Porque até entre um chorrilho de frases feitas, destinadas exclusivamente a destilar o ódio e as frustrações próprias e a gerar a dúvida entre os capazes, se conseguem retirar ensinamentos úteis. Assim fiz desde o primeiro momento, e assim continuarei a fazer enquanto o acto criativo e a edição me derem gozo e realização pessoal, e enquanto sinta que isso ecoa favoravelmente de algum modo entre os que me lêem e entre os que comigo colaboram. Se assim não for, ou quando tal deixar de acontecer, “fecho a porta” e vou pregar para outra freguesia; a BD portuguesa passou muito anos sem mim e não será o meu “desaparecimento” que ditará a passagem do estado pré-comatoso em que se encontra ao de morte definitiva, até porque no mercado não existe essa coisa da “irreversibilidade”.
Mas longe vá o agoiro e esta ridícula profecia quase suicidária do meu próprio enterro! Deve ser fruto da “silly season” que atravessamos ou, então, fui subitamente contagiado pela nuvem de inanidade que paira ameaçadora sobre nós. Sendo assim, urge então dissipá-la e clarear o horizonte de 2008 que se avizinha já aí; 2008 que se faz anunciar ribombante cheio de novas iniciativas, novas edições, novos eventos, em resumo, o mesmo de sempre. Pela minha parte, apelando à costela de Zandinga que há em todos nós, antevejo um ano de mudanças; profundas mudanças; o porquê disso, prefiro deixá-los a pensar; porque temos todos de começar a habituar-nos a pensar, mais e melhor; porque já estamos todos na idade de combater a inanidade. Um feliz Natal e um próspero Ano Novo.
Comentários
Terei que comentar mais tarde com mais tempo, mas é uma bela posta que aqui meteste, Mário!
Não sei como é o resto, mas para vocês estou muito optimista.
Cada vez mais se nivela por baixo, para ninguém se sentir chocado e ferir as susceptibilidades.
Ó Deus...
Como é bom sentirmo-nos intelctualmente tão bem acompanhados.