O que faz de nós verdadeiramente humanos? Será a nossa capacidade para raciocínios elaborados ou antes para emoções extremas? Para amar, sofrer, e, sobretudo, odiar? É esta questão primordial que Naoki Urasawa, o mais premiado autor japonês de BD dos últimos 20 anos, coloca no seu mais recente épico, «Pluto».
Num futuro indeterminado, humanos e robôs coexistem pacificamente num plano de aparente igualdade, graças a legislação criada ao longo dos anos que confere aos robôs direitos e garantias comparáveis às de qualquer cidadão. É então que os robôs mais sofisticados e poderosos do planeta, assim como activistas humanos dos direitos dos robôs, começam a ser misteriosamente eliminados e o Agente Gesicht, da Europol, ele próprio um desses robôs, é encarregado da investigação desses crimes.
Numa visão simplista, “Pluto” (Plutão, o deus romano da morte), é um remake e a simplicidade aparente da trama é herdada da história original de Osamu Tezuka, o pai do manga (BD japonesa), que criou na década de 60 "O Maior Robô na Terra", aquela que se viria a tornar a aventura mais popular de sempre de Astro Boy (Tetsuwan Atom). Mas onde Tezuka dirigia Astro Boy objectivamente para um público infantil – não é por acaso que foi alcunhado de “Walt Disney do Japão -, a abordagem de Urasawa é adulta e de uma complexidade fascinante, tecendo uma teia de intriga social, política e até geoestratégica, com paralelismos evidentes em acontecimentos reais. No “Pluto” de Urasawa, os robôs a abater (onde se inclui o próprio Tetsuwan Atom) fizeram parte da força de manutenção de paz que interveio na 39ª Guerra Centro-Asiática, um conflito iniciado pelos Estados Unidos da Trácia – liderados pelo Presidente Alexander, o mero testa de ferro de uma força sinistra -, sob pretexto da existência de robôs de destruição maciça na Pérsia do Rei Dário XIV; e os humanos visados formavam a equipa de observadores internacionais que procurou, sem sucesso, a existência dessas armas. Mas em “Pluto”, como na realidade, a guerra é inevitável haja ou não pretexto para ela, e as forças de paz acabam sempre elas próprias por se tornar nas armas de destruição maciça que se destinavam a combater. A analogia às invasões americanas do Afeganistão e, sobretudo, do Iraque, é clara, mas Urasawa não cai no cliché e na crítica fácil à administração Bush, antes usando a premissa para narrar um conto sublime sobre a humanidade e a natureza do que é ser-se “humano”, seja esse “humano” feito de carne e osso ou portador de uma inteligência artificial avançada. Aliás, a impossibilidade de distinguir a olho nu um humano “normal” de um robô avançado fica bem marcada no nome do protagonista, o polícia-robô Gesicht (cara, rosto, em alemão), um agente de fato e gravata aparentemente comum.
Toda a polémica em torno da legislação sobre robôs e a própria vivência quotidiana destes servem igualmente de alegoria às minorias raciais e sociais, e Urasawa não foge a questões como a adopção de crianças-robôs, a utilização destes como “carne para canhão” para fins militares ou, até, as condições de encarceramento de robôs criminosos, personificados no frio Brau 1589, o (aparentemente) único robô que alguma vez matou um humano, contrariando a sua programação elementar. Isso é habilmente usado por Urasawa como forma de reforçar a convicção que outro dos traços realmente humanos é a nossa capacidade de autodeterminação e livre arbítrio e de nos libertarmos de condicionamentos psíquicos e sociais.
Outro tema recorrente na obra de Urasawa é a forma como os acontecimentos na infância moldam o carácter e definem a personalidade futura; acontecimentos que definem a formação de heróis e definem, sobretudo, a formação de monstros. O próprio vilão aparente de “Pluto” é como uma criança influenciável, moldada por actos que a ultrapassam e cuja abrangência não compreende. “Pluto”, aliás, é todo um jogo de manipulações cruzadas em que o mestre bonecreiro se vê muitas vezes reduzido ao estatuto de um mero fantoche. Em “20th Century Boys”, recentemente adaptado ao cinema, toda a narrativa gira em torno de um símbolo criado por um grupo de crianças durante uma brincadeira comum. Já em “Monster”, a saga em 18 volumes que Naoki Urasawa criou durante a década de 90, a personalidade do “monstro”, Johann Liebert, é, aparentemente, formatada pelos seus mentores no orfanato na antiga R.D.A. onde é criado e educado para se transformar na simbiose perfeita entre os super-atletas fabricados por essa antiga potência do bloco soviético e o übermensch, o ariano perfeito, idealizado por Nietzche e sonhado por Adolf Hitler. Porém, em mais um traço narrativo marcante do autor japonês - a ligação quase umbilical entre os antagonistas - , o destino de Johann nunca se cumpriria em adulto, não fosse a intervenção do brilhante cirurgião Dr.Kenzo Tenma, que o opera e salva, em criança, de uma bala alojada no cérebro. O mesmo Dr.Tenma que dedicará a sua vida futura à perseguição incessante do tal “monstro” em que Johann se virá a tornar. Dr.Tenma, o protagonista de Monster, é, aliás, outra homenagem a Osamu Tezuka, usando o nome do cientista criador de Astro Boy (que tentou recriar um robô igual ao seu falecido filho Tobio), e cruzando-o com “Black Jack”, outra criação de Tezuka, precisamente sobre as deambulações e dilemas éticos de um cirurgião super dotado.
A grande riqueza das personagens de Urasawa está precisamente nesses dilemas éticos com que se deparam e na forma como todas encerram dentro de si uma grande capacidade para o bem ou para o mal. E aquilo que separa um homem (ou um robô) comum de um monstro cruel é muitas vezes apenas a capacidade de controlar as emoções extremas. E é notável a perafernália de personagens secundárias que Urasawa vai introduzindo ao longo da narrativa e que se tornam elas próprias no motor dessa narrativa, ao ponto dos protagonistas das histórias serem dispensados durante vários capítulos, sem haver a sensação de desconexão da trama principal. E o certo é que essa desconexão, de facto, não existe: cada capítulo, cada personagem aparentemente menos relevante que surge e desaparece logo a seguir, são peças imprescindíveis de um puzzle imenso que se vai formando na mente do leitor e que constrói, quando terminado, um edifício estruturado de solidez narrativa ímpar.
E falar de edifício estruturado na obra de Urasawa assume outra particular significância: a riqueza arquitectónica dos cenários que desenha, desde a Neo Tokyo City futurista de “Pluto” ao classicismo marcante do traço de cidades europeias como Praga ou Düsseldorf, palcos privilegiados de “Monster” cujas ruas e gentes Urasawa retrata de forma verosímil, revelando bem a mentalidade de um autor culto e viajado que rejeita a aversão ao exterior muito típica dos autores japoneses. O próprio traço artístico de Urasawa demarca-se claramente do mangá mais estilizado, associado a olhos e bocas grandes e a expressões exageradas, e é de uma elegância e de uma falsa simplicidade notável. A solidez da caneta de aparo, marcada aqui e ali por toques de pincel e de aguarela, confere à arte uma clareza e um toque polido que servem na perfeição os intuitos narrativos e a fluidez da história. Urasawa exibe a marca ímpar do autor completo e isso é bem visível no ritmo, na cadência perfeita, implacável, da composição das suas páginas, livres de confusões visuais ou artefactos estilísticos supérfluos.
Cimentada a sua carreira e o seu prestígio no Japão, durante a última década do século XX, Naoki Urasawa já não é apenas um dos mais premiados e conceituados autores japoneses da actualidade. Aos 49 anos, o argumentista, ilustrador e músico nascido em Tokyo está se a tornar igualmente um nome incontornável na Europa e nos Estados Unidos e é hoje, indiscutivelmente, um dos grandes “monstros” da BD mundial neste início do século XXI.
Comentários
Excelente iniciativa a tua.
Era interessante pedires aos teus leitores para fazerem recensões do que andam a ler, para partilhar informação. A única pessoa a fazê-lo de forma sistemática é o autor do Ler BD.
Eu alinhava, e acho que deveria ser extensível a qq género e nacionalidade de BD (p.ex., a última que li foi o Animal'Z do Bilal, a última dele, que é excelente), e mesmo a BD "antiga", e eventualmente fora de catálogo. P. Ex. a Casterman tem fora de catálogo há anos uma das minhas BD's favoritas, o Requiem Blanc, do Jean-Marc-Rochette e Benjamim Legrand, o que é uma lástima. Acho-a uma das melhores de sempre, é o impressionismo na BD, em termos de texto e desenho, e tb na união dos dois (é de 1986/87, publicada na A Suivre).
Abraço
Pedro Farinha
Um detalhe importante: não insultes (por assim dizer) as críticas do Pedro Moura no LerBD, chamando-lhes "recensões". Uma recensão é um mero resumo da narrativa, com pouca ou nenhuma subjectividade. Aquilo que o Pedro Moura (e eu, em menor escala e grau de erudicação) faz são críticas extensivas e de grande profundidade analítica e literária.
Mas venham daí essses textos.
Obrigado e um abraço,
Eu usei a palavra recensão ou review
mas de forma errada. Está aqui um comentário que uma vez fiz ao Pedro Moura:
http://lerbd.blogspot.com/2006/08/banda-desenhada-feminina-no-courier.html
Em relação aos textos tenho ali uma série deles para passar a limpo.
Mas seria bom se se gerasse um movimento geral de reviews, análises, micro-ensaios, etc.
Pq só um texto aqui e ali dá pouco gozo.
Tu tens mtos mais contactos que eu no âmbito da BD. Achas possível?
Abraço
Pedro
Nem sempre o que parece possível se consegue concretizar. Já ando há uns bons anos nisto para saber como é difícil passar das boas intenções aos actos, sobretudo aos actos regularmente repetidos. É de todo aconselhável começar-se "pequeno", digamos assim, do que nos lançarmos logos para grandes megalomanias, quase sempre utópicas.
Um aparte: no post anterior, escrevi "erudicação", em vez de erudição. Acreditem que não ando a ver se invento palavras novas...
Às vezes temos de usar o absurdo para contrapor a um absurdo ainda maior, neste caso a negação da universalidade da BD, chame-se ela "comics", "manga" ou "bande dessinée".