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NAOKI URASAWA - Monstro do Século XXI

Transcrição completa do artigo que escrevi para a última edição da revista Parq:

O que faz de nós verdadeiramente humanos? Será a nossa capacidade para raciocínios elaborados ou antes para emoções extremas? Para amar, sofrer, e, sobretudo, odiar? É esta questão primordial que Naoki Urasawa, o mais premiado autor japonês de BD dos últimos 20 anos, coloca no seu mais recente épico, «Pluto».

Num futuro indeterminado, humanos e robôs coexistem pacificamente num plano de aparente igualdade, graças a legislação criada ao longo dos anos que confere aos robôs direitos e garantias comparáveis às de qualquer cidadão. É então que os robôs mais sofisticados e poderosos do planeta, assim como activistas humanos dos direitos dos robôs, começam a ser misteriosamente eliminados e o Agente Gesicht, da Europol, ele próprio um desses robôs, é encarregado da investigação desses crimes.

Numa visão simplista, “Pluto” (Plutão, o deus romano da morte), é um remake e a simplicidade aparente da trama é herdada da história original de Osamu Tezuka, o pai do manga (BD japonesa), que criou na década de 60 "O Maior Robô na Terra", aquela que se viria a tornar a aventura mais popular de sempre de Astro Boy (Tetsuwan Atom). Mas onde Tezuka dirigia Astro Boy objectivamente para um público infantil – não é por acaso que foi alcunhado de “Walt Disney do Japão -, a abordagem de Urasawa é adulta e de uma complexidade fascinante, tecendo uma teia de intriga social, política e até geoestratégica, com paralelismos evidentes em acontecimentos reais. No “Pluto” de Urasawa, os robôs a abater (onde se inclui o próprio Tetsuwan Atom) fizeram parte da força de manutenção de paz que interveio na 39ª Guerra Centro-Asiática, um conflito iniciado pelos Estados Unidos da Trácia – liderados pelo Presidente Alexander, o mero testa de ferro de uma força sinistra -, sob pretexto da existência de robôs de destruição maciça na Pérsia do Rei Dário XIV; e os humanos visados formavam a equipa de observadores internacionais que procurou, sem sucesso, a existência dessas armas. Mas em “Pluto”, como na realidade, a guerra é inevitável haja ou não pretexto para ela, e as forças de paz acabam sempre elas próprias por se tornar nas armas de destruição maciça que se destinavam a combater. A analogia às invasões americanas do Afeganistão e, sobretudo, do Iraque, é clara, mas Urasawa não cai no cliché e na crítica fácil à administração Bush, antes usando a premissa para narrar um conto sublime sobre a humanidade e a natureza do que é ser-se “humano”, seja esse “humano” feito de carne e osso ou portador de uma inteligência artificial avançada. Aliás, a impossibilidade de distinguir a olho nu um humano “normal” de um robô avançado fica bem marcada no nome do protagonista, o polícia-robô Gesicht (cara, rosto, em alemão), um agente de fato e gravata aparentemente comum.

Toda a polémica em torno da legislação sobre robôs e a própria vivência quotidiana destes servem igualmente de alegoria às minorias raciais e sociais, e Urasawa não foge a questões como a adopção de crianças-robôs, a utilização destes como “carne para canhão” para fins militares ou, até, as condições de encarceramento de robôs criminosos, personificados no frio Brau 1589, o (aparentemente) único robô que alguma vez matou um humano, contrariando a sua programação elementar. Isso é habilmente usado por Urasawa como forma de reforçar a convicção que outro dos traços realmente humanos é a nossa capacidade de autodeterminação e livre arbítrio e de nos libertarmos de condicionamentos psíquicos e sociais.

Outro tema recorrente na obra de Urasawa é a forma como os acontecimentos na infância moldam o carácter e definem a personalidade futura; acontecimentos que definem a formação de heróis e definem, sobretudo, a formação de monstros. O próprio vilão aparente de “Pluto” é como uma criança influenciável, moldada por actos que a ultrapassam e cuja abrangência não compreende. “Pluto”, aliás, é todo um jogo de manipulações cruzadas em que o mestre bonecreiro se vê muitas vezes reduzido ao estatuto de um mero fantoche. Em “20th Century Boys”, recentemente adaptado ao cinema, toda a narrativa gira em torno de um símbolo criado por um grupo de crianças durante uma brincadeira comum. Já em “Monster”, a saga em 18 volumes que Naoki Urasawa criou durante a década de 90, a personalidade do “monstro”, Johann Liebert, é, aparentemente, formatada pelos seus mentores no orfanato na antiga R.D.A. onde é criado e educado para se transformar na simbiose perfeita entre os super-atletas fabricados por essa antiga potência do bloco soviético e o übermensch, o ariano perfeito, idealizado por Nietzche e sonhado por Adolf Hitler. Porém, em mais um traço narrativo marcante do autor japonês - a ligação quase umbilical entre os antagonistas - , o destino de Johann nunca se cumpriria em adulto, não fosse a intervenção do brilhante cirurgião Dr.Kenzo Tenma, que o opera e salva, em criança, de uma bala alojada no cérebro. O mesmo Dr.Tenma que dedicará a sua vida futura à perseguição incessante do tal “monstro” em que Johann se virá a tornar. Dr.Tenma, o protagonista de Monster, é, aliás, outra homenagem a Osamu Tezuka, usando o nome do cientista criador de Astro Boy (que tentou recriar um robô igual ao seu falecido filho Tobio), e cruzando-o com “Black Jack”, outra criação de Tezuka, precisamente sobre as deambulações e dilemas éticos de um cirurgião super dotado.

A grande riqueza das personagens de Urasawa está precisamente nesses dilemas éticos com que se deparam e na forma como todas encerram dentro de si uma grande capacidade para o bem ou para o mal. E aquilo que separa um homem (ou um robô) comum de um monstro cruel é muitas vezes apenas a capacidade de controlar as emoções extremas. E é notável a perafernália de personagens secundárias que Urasawa vai introduzindo ao longo da narrativa e que se tornam elas próprias no motor dessa narrativa, ao ponto dos protagonistas das histórias serem dispensados durante vários capítulos, sem haver a sensação de desconexão da trama principal. E o certo é que essa desconexão, de facto, não existe: cada capítulo, cada personagem aparentemente menos relevante que surge e desaparece logo a seguir, são peças imprescindíveis de um puzzle imenso que se vai formando na mente do leitor e que constrói, quando terminado, um edifício estruturado de solidez narrativa ímpar.

E falar de edifício estruturado na obra de Urasawa assume outra particular significância: a riqueza arquitectónica dos cenários que desenha, desde a Neo Tokyo City futurista de “Pluto” ao classicismo marcante do traço de cidades europeias como Praga ou Düsseldorf, palcos privilegiados de “Monster” cujas ruas e gentes Urasawa retrata de forma verosímil, revelando bem a mentalidade de um autor culto e viajado que rejeita a aversão ao exterior muito típica dos autores japoneses. O próprio traço artístico de Urasawa demarca-se claramente do mangá mais estilizado, associado a olhos e bocas grandes e a expressões exageradas, e é de uma elegância e de uma falsa simplicidade notável. A solidez da caneta de aparo, marcada aqui e ali por toques de pincel e de aguarela, confere à arte uma clareza e um toque polido que servem na perfeição os intuitos narrativos e a fluidez da história. Urasawa exibe a marca ímpar do autor completo e isso é bem visível no ritmo, na cadência perfeita, implacável, da composição das suas páginas, livres de confusões visuais ou artefactos estilísticos supérfluos.

Cimentada a sua carreira e o seu prestígio no Japão, durante a última década do século XX, Naoki Urasawa já não é apenas um dos mais premiados e conceituados autores japoneses da actualidade. Aos 49 anos, o argumentista, ilustrador e músico nascido em Tokyo está se a tornar igualmente um nome incontornável na Europa e nos Estados Unidos e é hoje, indiscutivelmente, um dos grandes “monstros” da BD mundial neste início do século XXI.

Comentários

Anónimo disse…
Olá Mário

Excelente iniciativa a tua.

Era interessante pedires aos teus leitores para fazerem recensões do que andam a ler, para partilhar informação. A única pessoa a fazê-lo de forma sistemática é o autor do Ler BD.

Eu alinhava, e acho que deveria ser extensível a qq género e nacionalidade de BD (p.ex., a última que li foi o Animal'Z do Bilal, a última dele, que é excelente), e mesmo a BD "antiga", e eventualmente fora de catálogo. P. Ex. a Casterman tem fora de catálogo há anos uma das minhas BD's favoritas, o Requiem Blanc, do Jean-Marc-Rochette e Benjamim Legrand, o que é uma lástima. Acho-a uma das melhores de sempre, é o impressionismo na BD, em termos de texto e desenho, e tb na união dos dois (é de 1986/87, publicada na A Suivre).

Abraço

Pedro Farinha
Mário Freitas disse…
Olá, Pedro. Estou sempre aberto às boas colaborações de quem esteja disposto a isso, claro.

Um detalhe importante: não insultes (por assim dizer) as críticas do Pedro Moura no LerBD, chamando-lhes "recensões". Uma recensão é um mero resumo da narrativa, com pouca ou nenhuma subjectividade. Aquilo que o Pedro Moura (e eu, em menor escala e grau de erudicação) faz são críticas extensivas e de grande profundidade analítica e literária.

Mas venham daí essses textos.

Obrigado e um abraço,
Anónimo disse…
Olá Mário

Eu usei a palavra recensão ou review
mas de forma errada. Está aqui um comentário que uma vez fiz ao Pedro Moura:

http://lerbd.blogspot.com/2006/08/banda-desenhada-feminina-no-courier.html

Em relação aos textos tenho ali uma série deles para passar a limpo.

Mas seria bom se se gerasse um movimento geral de reviews, análises, micro-ensaios, etc.

Pq só um texto aqui e ali dá pouco gozo.

Tu tens mtos mais contactos que eu no âmbito da BD. Achas possível?

Abraço

Pedro
Jorge disse…
Aproveito para agradecer publicamente ao Mário que me fez superar o preconceito em relação à banda desenhada fora dos EUA e da Europa. Naoki Urasawa foi o responsável pela minha conversão ao Universo da Bd Japonesa, é sem dúvida um grande monstro cujas obras ficam a pulsar nos meus pensamentos. Escrever e desenhar bem, estes dons canalizados no mesmo ser humano é raro, Urasawa é a prova viva dos bons resultados que daí podem surgir.
Mário Freitas disse…
Pedro,

Nem sempre o que parece possível se consegue concretizar. Já ando há uns bons anos nisto para saber como é difícil passar das boas intenções aos actos, sobretudo aos actos regularmente repetidos. É de todo aconselhável começar-se "pequeno", digamos assim, do que nos lançarmos logos para grandes megalomanias, quase sempre utópicas.

Um aparte: no post anterior, escrevi "erudicação", em vez de erudição. Acreditem que não ando a ver se invento palavras novas...
Mário Freitas disse…
Quanto ao "mea culpa" do Jorge e ao humilde reconhecimento do seu preconceito de outrora, cumpre-me dizer que cheguei a brincar com ele, fazendo uma analogia que, aparentemente, resultou em pleno: cheguei a dizer-lhe que, a partir de então, só iria ler BD que fosse feita por autores oriundos da fronteira entre as freguesias do Alto do Pina e da a Penha de França, porque tudo o resto era mau.

Às vezes temos de usar o absurdo para contrapor a um absurdo ainda maior, neste caso a negação da universalidade da BD, chame-se ela "comics", "manga" ou "bande dessinée".

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